Guerra retorna a casa à Grã-Bretanha


A liberdade está a perder-se na Grã-Bretanha. A terra da Magna Carta é agora a terra das ordens secretas de silenciamento, dos julgamentos secretos e do aprisionamento. O governo irá em breve ter conhecimento de cada telefonema, de cada e-mail, de cada mensagem de texto.
Artigo de John Pilger, publicado em Informação Alternativa

A polícia pode atirar deliberadamente a matar sobre um homem inocente, mentir e esperar sair-se com a sua. Comunidades inteiras temem agora o estado. O Ministro dos Negócios Estrangeiros encobre rotineiramente alegações de tortura; o secretário da justiça impede rotineiramente a libertação de minutas críticas do governo tomadas quando o Iraque foi invadido ilegalmente. A ladainha é superficial; há muito mais.

Na verdade, há tanto mais que a erosão das liberdades liberais é sintomática de um estado criminal evoluído. O paraíso para os oligarcas russos, juntamente com a corrupção dos sistemas fiscal e bancário e dos outrora admirados serviços públicos, tais como os Correios, é uma das faces da moeda; a outra é a carnificina invisível das guerras coloniais falhadas. Historicamente, o padrão é familiar. Tal como os crimes coloniais na Argélia, no Vietname e no Afeganistão explodiram de retorno para os seus perpetradores – a França, os Estados Unidos e a União Soviética -, também os efeitos cancerígenos do cinismo da Grã-Bretanha no Iraque e no Afeganistão retornaram para casa.

O exemplo mais óbvio são as atrocidades bombistas em Londres em 7 de Julho de 2005; ninguém no mandarinato dos serviços de informações britânicos duvida que estas foram um presente de Blair. “Terrorismo” descreve apenas alguns actos de indivíduos e grupos, e não a violência constante e industrial das grandes potências. A supressão desta verdade é deixada para os media credíveis. Em 27 de Fevereiro, o correspondente de Washington do Guardian, Ewen MacAskill, ao relatar a declaração do Presidente Obama de que a América estava finalmente a deixar o Iraque, como se fosse verdade, escreveu: «Para o Iraque, o número de mortos é desconhecido, na ordem das dezenas de milhares, vítimas da guerra, de uma revolta nacionalista, de uma luta interna sectária e dos jihadistas atraídos pela presença dos EUA». Assim, os invasores anglo-americanos são apenas uma «presença» e não directamente responsáveis pelo “desconhecido” número de mortes iraquianas. Uma tal contorção do intelecto é impressionante.

Em Janeiro do ano passado, um relatório elaborado pela respeitada Opinion Research Business (ORB) reviu uma anterior avaliação das mortes no Iraque para 1.033.000. Isto seguiu-se a um estudo exaustivo e revisto por pares em 2006 pela mundialmente reputada Faculdade de Saúde Pública John Hopkins, nos EUA, publicado na revista The Lancet, que constatou que 655.000 iraquianos tinham morrido como resultado da invasão. Funcionários estadunidenses e britânicos imediatamente despacharam o relatório como “defeituoso” – um engano deliberado. Documentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros obtidos ao abrigo da Lei de Liberdade de Informação revelaram um memorando escrito pelo principal consultor científico do governo, Sir Roy Anderson, no qual ele elogiou o relatório de The Lancet, descrevendo-o como «robusto e emprega métodos que são considerados como próximos das “melhores práticas” dadas [as condições] no Iraque». Um assessor do primeiro-ministro comentou: «A metodologia utilizada aqui não pode ser maculada, trata-se de uma forma experimentada e testada de medir a mortalidade em zonas de conflito». Falando alguns dias depois, um ministro dos Negócios Estrangeiros, Lord Triesman, disse: «A forma pela qual os dados são extrapoladas a partir de amostras para um resultado geral é um motivo de profunda preocupação».

O episódio ilustra a escala e o engano deste crime de estado. Les Roberts, co-autor do estudo da revista The Lancet, tem argumentado desde então que a Grã-Bretanha e a América podem ter causado no Iraque «um episódio mais mortífero do que o genocídio ruandês». Isto não é notícia. Também não o é uma referência crítica na campanha pelas liberdades organizada pelo colunista do Observer, Henry Porter. Numa conferência realizada em Londres em 28 de Fevereiro, Lord Goldsmith, procurador-geral de Blair, que notoriamente mudou de opinião e que aconselhou o governo de que a invasão era legal, quando não o era, foi um orador a favor da liberdade. Também o foi Timothy Garton Ash, um “intervencionista liberal”. Em 9 de Abril de 2003, pouco depois da carnificina ter começado no Iraque, um Garton Ash eufórico escreveu no The Guardian: «A América nunca foi o Grande Satã. Foi por vezes o Grande Gatsby: “Eles foram pessoas descuidadas, o Tom e a Daisy – quebravam coisas…”». Uma das funções da Grã-Bretanha «é continuar a lembrar ao Tom e à Daisy que eles agora têm promessas a cumprir». Menos frivolamente, ele louvou Blair pelo seu «forte instinto gladstoniano pela intervenção humanitária», e repetiu a propaganda do governo sobre Saddam Hussein. Em 2006, escreveu: «Agora nós enfrentamos o próximo grande teste do oeste após o Iraque: o Irão». (O itálico de “nós” é meu). Isto também adere precisamente à propaganda; David Milliband declarou o Irão uma «ameaça» possivelmente em preparação para a próxima guerra.

Como tantos do grupo dos mais papistas que o Papa do Novo Partido Trabalhista, Henry Porter celebrou Blair como um político quase místico que «se apresenta como um harmonizador de todos os interesses antagónicos na vida britânica, um conciliador de diferenças de classe e antipatias tribais, sintetizador de crenças antagónicas». Porter despachou como «disparate demoníaco» todas as análises dos ataques de 9/11 que sugeriram que existissem causas específicas: as consequências das acções violentas empreendidas pelos poderosos no Oriente Médio. Tal pensamento, escreveu, «corresponde exactamente aos pontos de vista de Osama bin Laden… com os que odeiam a América, isso é tudo o que existe – ódio». Este, obviamente, era o ponto de vista de Blair.

As liberdades estão a perder-se na Grã-Bretanha devido ao rápido crescimento do “estado de segurança nacional”. Esta forma de militarismo foi importada dos Estados Unidos pelo Novo Partido Trabalhista. Totalitária na essência, apoia-se na invocação do fantasma do medo para entrincheirar o executivo com mecanismos legais venais que diminuem progressivamente a democracia e a justiça. A “segurança” é tudo, como também o é a propaganda que promove guerras coloniais rapaces, mesmo como erros honestos. Afastem essa propaganda, e as guerras são expostos por aquilo que são, e o medo evapora-se. Afastem a reverência de muitos na elite liberal britânica para com o poder americano e ficam reduzidos a uma profunda mentalidade colonial de cruzado que encobre criminosos épicos como Blair. Processem esses criminosos e mudem o sistema que os cria e terão liberdade.

Fonte: site de John Pilger, jornalista, escritor, autor de diversos documentários cinematográficos.

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