No melhor discurso que fez em muito tempo, José Sócrates mostrou que tem muitas vidas, como deviam saber os que vezes sem conta lhe encomendaram a alma. Na primeira parte da intervenção que fez no comício do PS (há quem também lhe chame congresso) deixou claro o guião que vai usar na campanha.
A história é simples: estava o governo a tentar salvar o País e, quando finalmente a coisa se começava a compor, o PSD, com pressa para chegar ao governo, provocou uma crise política. Fez cair o governo e atirou o País para os braços do FMI. E para isso contou com a ajuda da oposição de esquerda – Sócrates chegou mesmo a dizer que PCP e BE “ofereceram ao FMI a oportunidade de entrar em Portugal”. Agora, o PSD vai aprovar medidas bem piores do que aquelas que chumbou. Ou seja, prova que a única coisa que o moveu foi a fome de poder. E desde que se soube que as eleições vêm aí e que vai ter finalmente de dizer o que quer fazer, não parou de meter os pés pelas mãos. O País deve ao PSD a embrulhada em que está metido e se der a vitória à direita aventureira isto vai ser um caos. Com os tiros no pé que Passos vai dando, a intervenção passa melhor do que seria razoavel pensar.
Sócrates faz o que sabe fazer melhor: oposição. Quem não se lembra do debate que teve com Louçã, em que conseguiu concentrar todo a discussão no programa do Bloco de Esquerda? Em que conseguiu a proeza de estar no poder e fazer o papel de um político de oposição a um partido que então tinha seis por cento. Agora faz o mesmo com o PSD. Sócrates não será grande governante, mas é o melhor líder da oposição que Portugal já conheceu. No caso, faz oposição à oposição.
Mas a parte realmente bem estruturada do seu longo discurso veio depois. Sócrates definiu quais são as suas grandes de divergências com o PSD. Depois de fazer oposição usando o comportamento passado do PSD, faz oposição à governação futura do PSD. Só de passagem falou do que ele próprio fez e do que ele fará. E, no entanto, é ele o primeiro-ministro.
Escolheu quatro grandes assuntos, todos eles caros à esquerda: privatizações, leis de trabalho, saúde e educação. O PSD quer “privatizar, privatizar, privatizar”, quer acabar com todos os direitos laborais, quer acabar com a saúde tendencialmente gratuita e quer transferir recursos da escola pública para a escola privada.
Quanto às privatizações, Sócrates esquece-se do passado e ignora o futuro. Esquece-se do passado, escondendo que é de sua autoria a proposta de uma das maiores listas de privatizações que o País já conheceu. Ignora o futuro, fingindo que o FMI e FEEF vão obrigar o próximo governo – seja de Sócrates, seja o de Passos – a privatizar tudo o que mexa. Isto quando as agências de rating garantiram que, com desvalorizações sucessivas, as empresas do Estado ficariam a preço de saldo. Sejamos justos: Sócrates sabe o que fez e o que fará se continuar no governo. Por isso, o combate contra as privatizações acaba por se ficar na oposição à entrada de capital provado na Caixa Geral de Depósitos. É tudo o que sobra ao PS na defesa de um setor empresarial público. Diz Sócrates que a CGD é fundamental, nesta fase da crise. Mau exemplo, não tivesse sido a CGD um dos bancos a encostar, há uma semana, o Estado português à parede. O problema é que a CGD se comporta como um banco privado.
Quanto às leis de trabalho, a última trincheira de Sócrates é a necessidade de “justa causa” para despedimento. E faz disto um combate civilizacional. Mais uma vez, esquece-se do passado e ignora o futuro. Esquece-se que ao embaratecer o despedimento o tornou muito mais fácil, com ou sem justa causa. Ignora que a intervenção externa obrigará o próximo governo a cumprir os sonhos do PSD. Sócrates fará o mesmo que Passos, mas contrariado? Talvez. Mas que diferença faz aos trabalhadores se o governo lhes tira direitos com convicção ou sem ela?
Quanto à saúde, a frente de batalha é a gratuitidade da prestação de serviços. E esta foi a parte mais longa e inflamada do seu discurso. Acontece que as recentes alterações na política de comparticipação nos medicamentos levou a um aumento brutal dos custos de saúde para todos os portugueses, e em especial para os mais pobres. E que as políticas de brutais cortes nas despesas públicas que o FMI e FEEF vão impor a Portugal tratarão de fazer na prática o que o PSD quer fazer na teoria. Mais uma vez, Sócrates esqueceu o passado e ignorou o futuro.
Quanto à educação, Sócrates concentrou-se no combate em torno do contratos de associação com os privados, no enorme investimento que terá feito nas escolas e nas propostas do PSD para dar ao ensino privado um papel não apenas complementar, mas de parte integrante do sistema público. E de, assim, criar um sistema que divide ricos e pobres por escolas diferentes. Sendo justo, este é o único exemplo de que Sócrates tem autoridade para falar. É verdade que, apesar dos enormes erros que cometeu na relação com os professores, investiu na rede escolar pública e tentou moralizar a mesada que o Estado dava a escolas privadas.
Na primeira parte do discurso, Sócrates virou-se para a direita e disse: posso não ser grande coisa mas eles são irresponsáveis e aventureiros. Na segunda parte, virou-se para a esquerda disse: posso não ser grande coisa mas eles são a selvajaria liberal. Onde falha? Na primeira parte falou do PSD e do FMI, como se ele próprio não tivesse existido. Na segunda parto falou de si e do PSD, como se o FMI não viesse aí.
Daniel Oliveira está a acompanhar, para o Expresso, o congresso do Partido Socialista em Matosinhos.